Maria Francelina: a verdadeira história por trás da lenda de Maria Degolada

A lenda de Maria Degolada persiste como um fenômeno cultural vibrante e multifacetado na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Nascida de um trágico evento real no final do século XIX, a história de Maria Francelina Trenes transcendeu os limites da crônica policial para se enraizar profundamente na imaginação popular, mesclando fatos históricos com elementos do folclore e da fé. A figura de Maria Degolada, ora vista como santa milagrosa, ora como assombração, continua a fascinar e a amedrontar, refletindo as complexas dinâmicas sociais, culturais e religiosas da região.

A História Trágica de Maria Francelina

Fotografia atribuída a Maria Francelina

A base da lenda reside na vida breve e trágica de Maria Francelina Trenes, uma jovem imigrante alemã que nasceu por volta de 1878. Pouco se sabe sobre sua vida pregressa, exceto que ela residia em Porto Alegre e, segundo alguns relatos da época, trabalhava como prostituta. Em 12 de novembro de 1899, aos 21 anos, Maria Francelina foi brutalmente assassinada por seu namorado, Bruno Soares Bicudo, um soldado da Brigada Militar.

O crime ocorreu durante um piquenique no Morro do Hospício, área que hoje é conhecida como Morro Maria da Conceição. Testemunhas relataram que o casal se afastou do grupo e iniciou uma discussão acalorada. Em um momento de fúria, Maria Francelina teria atacado Bruno com um pedaço de lenha e, posteriormente, com um cano de ferro. A reação de Bruno foi fatal: ele cortou o pescoço de Maria com uma faca, causando sua morte instantânea. A violência do ato chocou a população de Porto Alegre, e o caso ganhou grande destaque na imprensa da época, sendo considerado um dos primeiros feminicídios notórios da história da cidade. Bruno Bicudo foi preso e, posteriormente, condenado pelo crime.

O Nascimento de uma Lenda: Maria Degolada

A brutalidade do assassinato e a forma como Maria Francelina perdeu a vida rapidamente lhe renderam o apelido póstumo de "Maria Degolada". A comoção popular diante do crime, somada à crença folclórica de que mortes violentas e repentinas, sem os ritos religiosos adequados, poderiam levar o espírito do falecido a vagar, lançaram a semente para o surgimento da lenda.

Logo após sua morte, começaram a circular relatos de que o espírito de Maria Degolada aparecia perto do local do crime, muitas vezes descrito como uma luz misteriosa ou uma figura vestida de branco, emitindo gemidos e lamentos. Na mentalidade popular, Maria, assassinada e, segundo alguns, uma prostituta, encaixava-se no perfil de almas que não encontravam descanso. O Morro do Hospício, palco da tragédia, passou a ser conhecido como Morro da Maria Degolada, um nome que perdura até os dias atuais.

De Vítima a Santa Popular: A Ascensão da Devoção

Com o tempo, a figura de Maria Degolada começou a ser associada não apenas a um espírito sofredor, mas também a uma entidade capaz de realizar milagres. As populações da periferia de Porto Alegre, em particular, passaram a vê-la como uma santa popular que atendia aos pedidos e às preces dos menos afortunados.8 Uma pequena capela foi erguida em sua memória na colina onde o crime ocorreu, tornando-se um local de peregrinação para aqueles que buscam sua intercessão.

Os devotos de Maria Degolada a consideram uma santa milagrosa, especialmente para causas relacionadas a amores perdidos ou contrariados e mágoas do coração. A tradição popular afirma que ela concede todos os tipos de graças, com uma notável exceção: ela não atende a preces de policiais. Essa crença reflete o fato de Maria ter sido morta por um policial e se tornou um símbolo de resistência contra a violência policial e a opressão do poder público em uma comunidade pobre que se autodefine como "periférica" e "marginal". Em 2012, a capela dedicada a Maria Degolada foi reconhecida como patrimônio da comunidade, atestando a importância cultural e religiosa da figura.

Variações e Interpretações da Lenda

Ao longo dos anos, a lenda de Maria Degolada desenvolveu diversas variações e interpretações. Algumas versões antigas a descreviam como uma anã, contrastando com a imagem posterior associada à lenda urbana da "loira do banheiro". Outras narrativas a apresentavam como uma criança, filha de um pedreiro que levava o almoço para o pai diariamente, enfatizando sua pobreza e omitindo sua nacionalidade. Nesta versão, ela seria abordada pelo assassino, que tentaria estuprá-la antes de matá-la. Uma outra variação a descreve como uma jovem donzela assassinada pelo namorado após se recusar a seus avanços.

Embora a associação com a figura da "loira" tenha se tornado mais comum devido à influência de outras lendas urbanas, os relatos do início do século XX não mencionavam a cor de seu cabelo. A raça também não era um ponto de discussão nas primeiras versões, mas o gênero sempre foi central na narrativa. Com o tempo, Maria Francelina Trenes perdeu seu sobrenome e se tornou simplesmente "Maria", incorporando todas essas diferentes interpretações e nuances da lenda.

Maria Degolada e as "Santas Prostitutas" do Brasil

A devoção a Maria Degolada se insere em um fenômeno cultural mais amplo no Brasil: o culto às "santas prostitutas". Essas figuras, geralmente jovens e belas mulheres de "vida fácil" que tiveram um fim trágico, são objeto de veneração popular e consideradas intercessoras poderosas, especialmente para aqueles que vivem à margem da sociedade.

Assim como Maria Degolada, outras "santas prostitutas" como Maria Bueno em Curitiba, Maria Pequena em Passo Fundo, Maria do Carmo em São Borja e Maria Isabel em São Gabriel compartilham características comuns: mortes violentas (frequentemente por decapitação), associação com a prostituição (nem sempre comprovada, mas presente no imaginário popular) e uma transformação póstuma em figuras de devoção popular. Essas mulheres, apesar de sua marginalidade social, pareciam ser toleradas e até mesmo integradas à vida das camadas populares devido à sua compaixão pelos pobres e necessitados. A frase "diz que era uma mulher da vida, mas era uma das nossas", referindo-se a Maria do Carmo, ilustra essa perspectiva de solidariedade e identificação. A lenda de Maria Degolada, portanto, reflete a solidariedade das pessoas simples com uma jovem do povo, independentemente de sua profissão, sobrepondo-se à moral cristã tradicional que habitualmente leva à santidade.

Simbolismo e Significado Cultural

A lenda de Maria Degolada carrega um rico simbolismo e possui um profundo significado cultural, especialmente para a comunidade da Vila Maria da Conceição e para as mulheres vítimas de violência. No século XXI, Maria Degolada se tornou um símbolo de resistência e um grito contra o feminicídio. A placa em homenagem a ela na gruta dedica-se à memória das "muitas Marias em que se tornou, e em repúdio a todas as violências e discriminações contra mulheres", reforçando esse significado contemporâneo.

O fato de Maria ter sido morta por um representante do poder público, um policial, a transformou em um símbolo de resistência contra a exclusão social e a opressão estatal em uma comunidade marginalizada. A crença de que ela não atende a pedidos de policiais solidifica essa imagem de protetora da comunidade contra a violência policial. Para muitos moradores, Maria Degolada representa uma segurança e uma justiça que nunca lhes foram plenamente oferecidas pelo Estado.

O mito da assombração de Maria Degolada também possui um significado cultural importante. Ele é interpretado como uma forma de medo e cuidado, utilizado por pessoas mais velhas para dissuadir crianças de sair de casa à noite, protegendo-as em um contexto de violência. Assim, a lenda serve como um mecanismo de controle social e de preservação da segurança em um ambiente vulnerável.

Relatos de Graças e Aparições

A crença nos poderes milagrosos de Maria Degolada é difundida, e muitos devotos afirmam ter alcançado graças por meio de sua intercessão. Embora relatos específicos e detalhados de milagres não sejam amplamente documentados nos materiais de pesquisa, a persistência da devoção e a existência de ex-votos (objetos deixados como agradecimento por graças alcançadas) na capela indicam a crença na sua capacidade de ajudar.

A transformação de Maria Degolada em Maria da Conceição, após uma suposta mensagem recebida em uma sessão espírita, também é um aspecto interessante da lenda. Nessa mensagem, ela teria expressado o desejo de não ser lembrada como "degolada", mas sim como Maria da Conceição. Esse evento contribuiu para a renomeação da vila e para a construção da capela, mostrando a dinâmica entre a crença popular e a evolução da lenda.

Relatos de aparições de Maria Degolada, embora menos comuns do que a crença em suas graças, também circulam em Porto Alegre. Essas aparições são geralmente descritas como figuras femininas vestidas de branco ou como luzes misteriosas, reforçando a natureza sobrenatural da lenda. A confusão com a lenda da "loira do banheiro" (Bloody Mary) entre estudantes do Rio Grande do Sul demonstra como diferentes elementos do folclore podem se misturar e se influenciar.

Maria Degolada na Cultura Popular

A história de Maria Degolada inspirou diversas obras na cultura popular, atestando seu impacto duradouro na comunidade de Porto Alegre. O caso foi tema de publicações do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, como o livro "Maria Degolada: mito ou realidade?". O livro "Maria Degolada" de Hércules Grecco foi adaptado para o teatro, levando a lenda aos palcos. A literatura infantil também explorou a figura de Maria Degolada, como no livro "Maria Degolada: santa assombrada" de Caio Riter.

A lenda também transcendeu as páginas dos livros, inspirando a criação de uma cerveja artesanal pela cervejaria Anner Bier, músicas e um cordel escrito por Gilbamar de Oliveira. Além disso, o documentário "As Marias da Conceição – Por um ensino de história situado" abordou a história de Maria Degolada e seu significado para a comunidade local. Uma live no YouTube também debateu os mitos e fatos da lenda, mostrando o interesse contínuo na figura. A própria história de Maria Degolada é considerada patrimônio cultural imaterial de Porto Alegre, um reconhecimento de sua importância para a identidade da cidade.

Conclusão

A lenda de Maria Degolada é muito mais do que uma simples história de crime e assombração. Ela representa a complexa interação entre um evento histórico trágico, a fé popular, as dinâmicas sociais e a cultura de uma comunidade. A transformação de Maria Francelina Trenes em Maria Degolada, santa popular e símbolo de resistência, demonstra o poder da narrativa coletiva em dar significado e transcendência a eventos dolorosos. Sua história continua a evoluir, sendo ressignificada pelas novas gerações e mantendo-se viva no imaginário de Porto Alegre como um lembrete da violência contra a mulher, da força da crença popular e da busca por justiça e proteção nas margens da sociedade.

Referências

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