Demônios no Judaísmo: Da Torá aos Textos Apócrifos
1. Demonologia na Torá: Um Começo Sutil
Na Torá (os cinco livros de Moisés), as referências a entidades demoníacas são escassas e ambíguas, refletindo a ênfase monoteísta do Judaísmo em YHWH como a única fonte de poder sobrenatural. No entanto, vestígios de crenças em seres espirituais aparecem em alguns trechos. Por exemplo:
- Levítico 17:7: Menciona os "se'irim" (literalmente "bodes" ou "sátiros"), aos quais os israelitas ofereciam sacrifícios, sugerindo a existência de entidades espirituais associadas a práticas pagãs. Esses seres são frequentemente interpretados como demônios ou espíritos do deserto na tradição posterior.
- Deuteronômio 32:17: Refere-se a "shedim", entidades às quais sacrifícios eram oferecidos, mas que não eram deuses verdadeiros. O termo "shedim" será mais tarde associado a demônios na tradição rabínica.
A Torá, no entanto, não desenvolve uma demonologia sistemática. O foco está na soberania de Deus, com pouca atenção a uma hierarquia de seres malignos. Essas entidades são vistas mais como forças impuras ou influências pagãs do que como adversários cósmicos de Deus.
2. Influências do Exílio e o Período do Segundo Templo
O contato com as culturas babilônica e persa durante o exílio (século VI a.C.) e o período do Segundo Templo (516 a.C. - 70 d.C.) marca um ponto de inflexão na demonologia judaica. A influência do dualismo zoroástrico, que opunha forças do bem e do mal, contribuiu para uma visão mais estruturada de entidades demoníacas. Textos como os de Isaías e Zacarias mostram sinais dessa evolução:
- Isaías 34:14: Menciona "Lilith", um ser noturno associado a espíritos malignos ou demônios na mitologia mesopotâmica. Embora a Torá não detalhe Lilith, ela se tornará uma figura proeminente na demonologia judaica posterior, especialmente no Talmud e na Cabala.
- Zacarias 5:9-11: Descreve figuras femininas aladas que carregam a iniquidade, interpretadas por alguns como precursoras de uma demonologia mais elaborada.
Durante esse período, os demônios começam a ser vistos como agentes de tentação ou castigo divino, ainda subordinados à vontade de Deus, mas com maior autonomia do que na Torá.
3. Textos Apócrifos e Pseudepígrafos: Uma Demonologia Expandida
Os textos apócrifos e pseudepígrafos, escritos entre os séculos III a.C. e I d.C., oferecem uma visão mais rica e detalhada da demonologia judaica. Influenciados pela helenização e pela interação com outras culturas, esses textos introduzem conceitos como anjos caídos, espíritos malignos e uma hierarquia demoníaca. Alguns exemplos notáveis incluem:
Livro de Enoque (1 Enoque): Um dos textos mais influentes, o Livro de Enoque descreve a queda dos anjos (os "Vigilantes") que se rebelaram contra Deus, copularam com mulheres humanas e geraram os Nefilim, seres híbridos. Esses anjos caídos, liderados por figuras como Azazel e Semjaza, são associados ao surgimento do mal e à disseminação de conhecimento proibido (1 Enoque 6-11). Os espíritos dos Nefilim mortos tornam-se demônios que atormentam a humanidade.
Livro dos Jubileus: Este texto reforça a narrativa de anjos caídos e introduz Mastema, um príncipe demoníaco que atua como adversário, mas ainda sob o controle de Deus. Mastema é responsável por testar a humanidade, como no caso da provação de Abraão (Jubileus 17:16).
Testamento dos Doze Patriarcas: Descreve demônios como forças que incitam pecados específicos, como luxúria ou inveja, influenciando o comportamento humano.
Nesses textos, a demonologia judaica começa a incorporar um dualismo ético, com demônios representando forças de corrupção moral, embora nunca equiparáveis ao poder divino. A ideia de um "Satanás" como adversário também ganha força, mas ele ainda é visto como um servo de Deus, não como um opositor independente, como no Cristianismo posterior.
4. Funções e Características dos Demônios
Nos textos apócrifos, os demônios assumem papéis variados:
- Tentadores: Incitam os humanos ao pecado, como no Testamento de Rúben, onde espíritos de luxúria seduzem os homens.
- Castigadores: Atuam como agentes do juízo divino, infligindo doenças ou desgraças, como no caso de Azazel em 1 Enoque.
- Espíritos impuros: Associados a lugares desolados ou impuros, como desertos e sepulcros, refletindo influências mesopotâmicas.
Os demônios são frequentemente descritos como subordinados a Deus, mas com certo grau de autonomia, o que reflete a tensão entre o monoteísmo judaico e as influências dualistas externas.
5. Impacto na Tradição Rabínica e na Cabala
A demonologia dos textos apócrifos influenciou profundamente a literatura rabínica e a tradição mística judaica. No Talmud (séculos III-VI d.C.), os "shedim" são descritos como seres invisíveis que habitam o mundo, capazes de causar danos, mas controláveis por meio de rituais e orações. Lilith, por exemplo, torna-se uma figura central como um demônio feminino que ameaça mulheres grávidas e recém-nascidos.
Na Cabala, especialmente no Zohar (século XIII), a demonologia ganha uma dimensão cósmica. Os demônios são vistos como manifestações da "sitra achra" (o "outro lado"), a força oposta à santidade, mas ainda parte do plano divino. Figuras como Samael e Lilith assumem papéis proeminentes como líderes das forças demoníacas.
6. Conclusão
A demonologia no Judaísmo evolui de referências vagas na Torá a um sistema complexo nos textos apócrifos e na tradição rabínica. Enquanto a Torá enfatiza a soberania de Deus e minimiza a importância de entidades demoníacas, os textos apócrifos, influenciados por culturas vizinhas, introduzem uma visão mais detalhada de demônios como anjos caídos, espíritos malignos e agentes do pecado. Essa evolução reflete a capacidade do Judaísmo de integrar e reinterpretar elementos externos sem comprometer seu monoteísmo fundamental. Nos textos apócrifos, os demônios ganham contornos mais definidos, preparando o terreno para as ricas tradições demonológicas do Talmud e da Cabala, que continuam a influenciar o pensamento judaico até os dias atuais.
Referências sugeridas para leitura adicional
- Livro de Enoque (1 Enoque), capítulos 6-16.
- Livro dos Jubileus.
- Bohak, Gideon. Ancient Jewish Magic: A History. Cambridge University Press, 2008.
- Trachtenberg, Joshua. Jewish Magic and Superstition: A Study in Folk Religion. University of Pennsylvania Press, 2004.

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