Gaslighting no Terror: Quando a Realidade é o Verdadeiro Vilão

O conceito de gaslighting, que se refere à manipulação psicológica intencional para fazer alguém duvidar de sua própria sanidade, memórias ou percepção da realidade, encontra um terreno fértil no gênero do terror, especialmente no subgênero psicológico, onde o medo não surge de monstros visíveis ou sangue derramado, mas da erosão gradual da confiança em si mesmo. Nesse contexto, a realidade se torna o verdadeiro vilão, um antagonista invisível e insidioso que transforma o cotidiano em um labirinto de incertezas. Filmes como O Homem Invisível, lançado em 2020 e dirigido por Leigh Whannell, e Bebê de Rosemary, de 1968, dirigido por Roman Polanski, exemplificam essa abordagem, utilizando o gaslighting como ferramenta central para construir tensão e horror. Esses trabalhos não apenas entretêm, mas espelham medos profundos da sociedade contemporânea, como a manipulação em relacionamentos abusivos e a perda de controle sobre a própria vida, revelando como o terror pode ser uma metáfora poderosa para experiências reais de vulnerabilidade emocional e psicológica.

Em Bebê de Rosemary, baseado no romance de Ira Levin, a protagonista Rosemary Woodhouse, interpretada por Mia Farrow, é uma jovem esposa que se muda para um apartamento em Nova York com seu marido Guy, um ator em ascensão. A trama se desenrola em torno de sua gravidez, que começa como um evento joyful, mas rapidamente se transforma em um pesadelo de paranoia e isolamento. O gaslighting aqui é orquestrado por um círculo de personagens que rodeiam Rosemary, incluindo seu marido, vizinhos idosos e até seu médico, todos conspirando para fazê-la questionar suas suspeitas sobre uma conspiração satânica envolvendo seu bebê. Desde o início, quando Rosemary ouve ruídos estranhos vindos do apartamento vizinho e descobre histórias sombrias sobre o prédio, Guy minimiza suas preocupações, atribuindo-as a uma imaginação fértil ou ao estresse da mudança. Essa negação sutil é o cerne do gaslighting: não é uma confrontação direta, mas uma invalidação constante que planta sementes de dúvida. Por exemplo, após uma noite em que Rosemary consome uma mousse de chocolate oferecida pelos vizinhos Minnie e Roman Castevet, ela tem visões alucinatórias de um estupro demoníaco, acordando com arranhões no corpo. Guy explica isso como um episódio de sexo embriagado, culpando a si mesmo por ser "um pouco rude", mas garantindo que foi apenas uma noite comum. Essa mentira não só encobre a verdade horrenda – que Guy permitiu que o diabo a engravidasse em troca de sucesso profissional – como também faz Rosemary se sentir culpada por duvidar dele, reforçando a ideia de que suas percepções são falhas.

À medida que a gravidez avança, o gaslighting se intensifica através do controle sobre o corpo e a mente de Rosemary. Seu médico, Dr. Sapirstein, recomendado pelos Castevets, prescreve bebidas herbais que causam dor intensa e perda de peso, mas descarta suas queixas como sintomas normais de gravidez, sugerindo que ela está exagerando. Quando Rosemary busca ajuda de outro médico, Dr. Hill, e relata suas suspeitas de uma conspiração, Guy e Sapirstein intervêm, sedando-a e ameaçando interná-la em uma instituição psiquiátrica, rotulando-a como histérica. Essa cena encapsula o horror psicológico: Rosemary, isolada de amigos e família, vê suas evidências – como um livro sobre bruxaria deixado por um amigo falecido – serem descartadas ou destruídas por Guy, que as chama de bobagens. O filme culmina com o nascimento do bebê, anunciado como natimorto, apenas para Rosemary descobrir que ele está vivo e é o filho do demônio, com olhos demoníacos. Nesse ponto, o gaslighting atinge seu ápice, pois o coven – incluindo Guy – a convence a aceitar o bebê, transformando sua resistência em resignação materna. Polanski constrói o terror não com jumpscares, mas com close-ups no rosto de Farrow, capturando a angústia de uma mulher cuja realidade é reescrita por aqueles em quem ela confia, refletindo como o patriarcado pode manipular narrativas para manter o controle.

Similarmente, em O Homem Invisível de 2020, a protagonista Cecilia Kass, vivida por Elisabeth Moss, escapa de um relacionamento abusivo com Adrian Griffin, um cientista rico e controlador especializado em óptica. O filme atualiza o clássico de H.G. Wells, transformando a invisibilidade em uma metáfora para o abuso psicológico invisível, onde o gaslighting é o mecanismo principal de terror. Após a suposta morte de Adrian por suicídio, Cecilia herda uma fortuna, mas eventos estranhos começam a ocorrer: objetos se movem sozinhos, portas se abrem, e ela sente uma presença invisível. Adrian, na verdade, finge sua morte e usa um traje de invisibilidade para persegui-la, manipulando situações para fazê-la parecer louca aos olhos dos outros. Um exemplo chave é durante uma entrevista de emprego, quando Cecilia descobre que seu portfólio está vazio e desmaia devido a altos níveis de diazepam em seu sangue – o mesmo remédio que ela usou para drogar Adrian durante a fuga. Isso não só a faz duvidar de sua memória, mas também a isola de sua irmã Emily, que recebe um e-mail ofensivo supostamente enviado por Cecilia, levando a uma briga onde Emily a acusa de ser "estúpida e fraca" por não distinguir aliados de inimigos. Essa linguagem ecoa o gaslighting real, onde vítimas são culpadas por seu próprio abuso, sugerindo que poderiam tê-lo evitado.

O irmão de Adrian, Tom, age como cúmplice, negando qualquer envolvimento e insinuando que Cecilia está deixando Adrian "vencer" mesmo após a morte, aprofundando sua paranoia. O invisível ataca a filha de seu amigo James, Sydney, e Cecilia é culpada, levando James a questionar sua sanidade. O clímax do gaslighting ocorre quando o invisível mata Emily em um restaurante, colocando a faca na mão de Cecilia e a enquadrando pelo assassinato, resultando em sua internação em um hospital psiquiátrico. Lá, ela descobre estar grávida – Adrian sabotou seu controle de natalidade – e Tom oferece livrá-la das acusações se ela voltar para Adrian e criar a criança, revelando o controle reprodutivo como outra camada de manipulação. Cecilia, no entanto, vira o jogo: ela rouba o traje, confronta Adrian com um gravador escondido e o provoca a admitir indiretamente sua culpa, antes de matá-lo fora das câmeras, sussurrando "surpresa" – uma inversão poética do gaslighting que ele impôs. Whannell usa enquadramentos vazios e silêncios para enfatizar o horror da invisibilidade, simbolizando como abusadores podem operar sem serem vistos, erodindo a autonomia da vítima.

Esses filmes não são meras ficções; eles refletem medos reais de manipulação e perda de controle que permeiam a sociedade. O gaslighting, termo popularizado pelo filme Gaslight de 1944, onde um marido faz a esposa duvidar de sua sanidade para roubar joias, é uma tática comum em relacionamentos abusivos, especialmente contra mulheres. Em Bebê de Rosemary, a gravidez de Rosemary e o controle sobre seu corpo ecoam as experiências de muitas mulheres que enfrentam coerção reprodutiva, onde parceiros ou familiares minimizam sintomas ou forçam decisões médicas, levando a uma sensação de alienação do próprio corpo. O filme, lançado em 1968, captura o zeitgeist da era, com o movimento feminista emergente questionando papéis tradicionais de gênero, e Rosemary representa a mulher moderna presa em uma rede patriarcal que a infantiliza e a isola. Da mesma forma, O Homem Invisível surge no contexto do #MeToo, destacando como vítimas de abuso doméstico frequentemente não são acreditadas por autoridades ou entes queridos, que atribuem suas alegações a instabilidade emocional. Cecilia's luta para provar a existência de um abusador invisível espelha relatos reais de sobreviventes que descrevem o abuso psicológico como um fantasma que os persegue, causando PTSD e dúvida crônica. Estudos psicológicos indicam que o gaslighting causa danos cerebrais semelhantes ao estresse crônico, alterando a percepção da realidade e levando a depressão, ansiedade e perda de identidade.

A perda de controle é o cerne desses medos: em ambos os filmes, as protagonistas perdem agência sobre suas vidas, corpos e narrativas. Rosemary é gradualmente isolada de amigos, como Hutch, que morre antes de revelar segredos, enquanto Cecilia é separada de sua irmã e amigo pela manipulação digital e física. Isso reflete dinâmicas reais onde abusadores controlam redes sociais, finanças ou acessos médicos para manter o poder, criando um ciclo onde a vítima duvida de si mesma para sobreviver. O terror psicológico amplifica isso ao tornar o vilão intangível – o demônio em Rosemary ou a invisibilidade em Cecilia – simbolizando como a manipulação pode ser onipresente e indetectável. Na vida real, isso se manifesta em contextos além do romântico, como no trabalho, onde chefes gaslight funcionários para encobrir erros, ou em sociedades onde minorias são feitas para duvidar de discriminações sistêmicas. Filmes como esses servem como catarse, permitindo que o público confronte esses medos em segurança, mas também como alerta, mostrando que o verdadeiro horror reside na banalidade do mal: não em monstros sobrenaturais, mas em pessoas comuns que distorcem a realidade para dominar.

Além disso, o impacto cultural desses filmes reforça sua relevância. Bebê de Rosemary influenciou obras como A Mão que Balança o Berço e Midsommar, onde o gaslighting comunitário leva a horrores coletivos, refletindo medos de cultos ou grupos ideológicos que manipulam membros vulneráveis. O Homem Invisível, por sua vez, inspirou discussões sobre tecnologia e abuso, com trajes de camuflagem ou vigilância digital representando como ferramentas modernas podem amplificar o controle invisível. Em uma era de fake news e deepfakes, onde a realidade é questionada diariamente, esses filmes advertem sobre a fragilidade da verdade pessoal. A vingança de Cecilia, ao contrário da resignação de Rosemary, oferece um arco de empoderamento, sugerindo que romper o ciclo de gaslighting requer astúcia e aliados, mas nem sempre termina em justiça real – muitas vítimas na vida cotidiana enfrentam descrença contínua, perpetuando a perda de controle.

Em última análise, o gaslighting no terror psicológico como visto nesses filmes transforma a realidade em vilão porque expõe a vulnerabilidade inerente à condição humana: dependemos de outros para validar nossas experiências, e quando essa validação é negada, o mundo se torna hostil e incerto. Ao dissecar esses mecanismos, O Homem Invisível e Bebê de Rosemary não só aterrorizam, mas iluminam caminhos para resistência, encorajando empatia e vigilância contra manipulações que, infelizmente, são mais comuns do que qualquer entidade sobrenatural. Assim, o verdadeiro terror reside não no escuro, mas na luz distorcida da dúvida imposta.
Gustavo José
Gustavo José Fascinado pelo mundo do terror e do suspense, sou o fundador do blog Terror Total, onde trago histórias envolventes e arrepiantes para os leitores ávidos por emoções fortes.

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